Entrevista realizada ao artista Vasco Araújo a propósito da exposição “Hipólito”,  no âmbito do ciclo de exposições “Projecto Travessa da Ermida no MAP”, organizado por Sérgio Parreira, no Museu Nacional de Arte Popular, 2013

Vasco Araújo (Lisboa, 1975) é um dos artistas contemporâneos mais multifacetados do panorama da História da Arte nacional e internacional. Estudou Artes Plásticas, canto lírico e serve-se da sua formação e de meios diversificados para transmitir a sua concepção do mundo, mas acima de tudo para colocar questões a quem contacta com a sua obra. Em 2003, criou o vídeo “Hipólito”, baseado na tragédia grega homónima de Eurípedes, que retrata as tensões entre Fedra e Hipólito, madrasta e enteado, respectivamente. Através de um vídeo de cerca de 15 minutos, onde somos confrontados com um jogo ambíguo que se baliza entre a candidez e a perversidade de duas crianças que brincam, o artista convoca o espectador a tomar posições. “Hipólito” foi o seu primeiro vídeo realizado com alguma complexidade, apesar dos meios rudimentares de que, à data, dispunha. Volvidos dez anos, Vasco Araújo volta a exibir no Museu de Arte Popular “ Hipólito”, com as suas narrativas subjacentes que nos remetem, entre outros temas, para o Estado Novo, período em que foi edificado este Museu.

Por Catarina da Ponte

A cultura clássica está muito presente no seu trabalho. O que lhe despertou, concretamente, interesse em “Hipólito” de Eurípedes?

É uma tragédia fantástica… Quando comprei o livro li-o numa só noite. Voltei a lê-lo uma segunda vez, mas apenas as falas da personagem Hipólito. À medida que fui lendo, fui-me apercebendo que esta personagem tinha tiradas absolutamente demoníacas mas que se diluíam com os diálogos das restantes personagens. Portanto, o que me interessou concretamente em Hipólito foram todos aqueles disparates e obscenidades que ele dizia sobre as mulheres, sobre o seu próprio pai e sobre a fatalidade da vida, que eram de um narcisismo assoberbado. Por outro lado, recorro às tragédias porque acredito que os seres humanos só se revelam em situações extremadas, ninguém se revela no dia-a-dia.

O facto de no vídeo só termos as falas de Hipólito, condiciona o espectador a tomar o partido desta personagem na trama?

A situação que observamos no vídeo é perfeitamente mundana e actual, são duas crianças que brincam juntas. No entanto, a forma de filmar condiciona a realidade que vemos e é precisamente com o texto que interpretamos melhor aquelas imagens. Contudo, no vídeo dificilmente conseguimos ler o texto completo e ver as imagens ao mesmo tempo. Trata-se de uma quantidade de texto astronómica e numa língua que quase ninguém percebe (grego). Interessa-me essa situação prática de termos de optar entre texto ou imagem, mas também se estamos de acordo com o que aquele personagem diz, ou se estamos de acordo com a rapariga, que é muito mais expedita, não tem voz, mas também está ali. Tudo depende dos nossos “claustros” e da forma como interpretamos a peça. Em suma, a obra tem um subtexto que depende da nossa realidade e daquilo que pensamos da vida.

Porquê recorrer à indumentária da Mocidade Portuguesa para vestir as suas personagens?

Porque todos os regimes fascistas se apropriaram, precisamente, de tragédias clássicas para veicular determinadas ideologias. Wagner acabou por servir de inspiração às ideologias nazistas. No caso português, a censura servia prementemente para exaltar “Deus, Pátria e Família”. Nesta tragédia, é claro que aquele rapaz é um casto (um chato) e que no fundo morre de desejo pela sua madrasta Fedra.

Porque é que as personagens Fedra e Hipólito são representadas por crianças?

Porque as crianças são um alvo mais complicado, em termos psicológicos, de observação da realidade. Por um lado, são absolutamente genuínas e dizem sempre a verdade, de uma forma geral, mas por outro, não a sabem interpretar porque não têm filtros, não têm defesas porque ainda estão a aprender a construí-las. Interessa-me também a situação de um jogo de sedução entre duas crianças, como se estivesse sempre presente um lado de perversidade de uma forma não consciente. Faço também uma releitura do Estado Novo, no caso da Mocidade Portuguesa, as crianças também faziam uma série de coisas de forma natural, sem terem consciência de que o estavam a fazer, eram obrigadas pelos pais e pelo Estado. Ou seja, eram cilindradas, tal como na tragédia Hipólito: o rapaz sente-se comprometido, mas ao mesmo tempo reage de uma forma absolutamente exagerada que o leva à morte.

De que forma “Hipólito” serve para descodificar o presente ou a época a que faz alusão?

É a tal questão dos claustros, de onde nos situamos e como vemos a realidade. Não sei se esta peça é exatamente uma crítica ao Estado Novo, usei este período como situação hiperbólica em relação ao nosso país e à realidade do mundo, mas acima de tudo, a peça é sobre o Ser Humano, é sobre a construção de uma identidade. Recentemente, disse numa entrevista que o meu trabalho não é político, socialmente ou realmente político, acho que o meu trabalho é psicologicamente político. Ou seja, o que eu gostaria realmente de conseguir com as minhas obras é colocar questões às pessoas, fazê-las pensar e a pô-las em causa. Esta interacção que a peça tem não é uma crítica ao Estado Novo, é apenas uma forma de nós nos observarmos.

Em termos técnicos como vê a sua produção videográfica? Filmes ou vídeos?

Acho que não faço filmes, faço vídeos. A técnica é muito parecida, de facto, e não há muitas maneiras de se fazer imagem em movimento, pois as máquinas são as mesmas. Quando fiz este vídeo, tinha feito anteriormente três vídeos muito simples, tínhamos a câmara, filmávamos a acção e acabou. Este não… Hipólito teve takes, foi filmado na tribuna do Estádio Nacional, tinha duas crianças que serviam de actores, tinha um guião, um plano de acção a construir no espaço e só não tinha luzes porque se tratava de iluminação natural. Acabei por construir os planos esteticamente de forma a que correspondessem ao que pretendia dizer. Sobretudo os close-ups dos olhares, foram construídos de forma a adensar aquele jogo de sedução. É precisamente com a câmara, esse segundo olhar, que se constrói toda uma outra narrativa que no fundo não está lá. Caso contrário, seriam apenas duas crianças a brincar à cabra cega, depois ela amua, vai ter com ele, etc. E, por exemplo, a questão da baba quando tocam flauta: a baba aconteceu por acaso, porque como filmámos horas, as crianças começaram a babar-se e aproveitei aquilo para um jogo erótico que não existe efectivamente. Mas são precisamente os planos, a forma de filmar e as várias situações que no levam a acreditar que um jogo de sedução e um jogo erótico entre aquelas duas crianças, que na realidade não existia. Só estava lá eu e a Catarina Campino a filmar.

Porque escolheu especificamente para este vídeo a língua grega?

Porque é a língua das tragédias e por uma questão conceptual de ter a língua contemporânea ideal para dizer aquele texto. Queria também criar a opção ao espectador de escolher entre a imagem e o texto. As legendas também fazem parte da peça, não estão lá só porque as pessoas não entendem o grego, claro que também cumprem essa função, mas fazem parte da obra.

Qual a relação desta peça com o Museu de Arte Popular?

A peça estabelece uma relação forte com este espaço porque o Museu de Arte Popular foi construído para a Exposição do Mundo Português de 1940 e eu utilizo duas crianças vestidas com indumentária da Mocidade Portuguesa e filmadas no estádio nacional, uma obra pública da mesma época. Por outro lado, o teatro sempre se fez para o povo e é, por definição, uma forma de Arte Popular.