Entrevista realizada ao artista Miguel Palma a propósito da exposição “Autóctone”no Museu de Arte Popular, enquadrada no ciclo de exposições “Projecto Travessa da Ermida no MAP”, organizado por Sérgio Parreira, Julho de 2014
A instalação de grande escala é uma das características mais marcantes na obra de Miguel Palma. Desta vez, o artista coloca à entrada do Museu de Arte Popular (MAP) um carro de guerra – ativado pela última vez, em 1991, num campo de batalha iraquiano – e “recupera”, no interior do museu, uma maquete de um empreendimento turístico algarvio que nunca chegou a ser concretizado. Vinte e três anos depois, o dispositivo bélico é novamente ativado sob o seu comando e o esboço da aldeia turística, dos anos 60, volta a ser repensado enquanto matéria de reflexão artística. Em entrevista, Miguel Palma, explica-nos como estes dipositivos foram o ponto de partida para explanar conceitos como: “construção”, “implosão”, “destruição” e “regeneração”.
Por Catarina da Ponte
Em 2012, participou na exposição “Desert Initiative Remote Shuttle”, que teve lugar no Arizona State University Art Museum, no qual modificou um veículo militar. Trata-se do mesmo dispositivo que apresenta agora em “Autóctone”?
É semelhante. Nessa exposição utilizei um modelo de um carro muito idêntico a uma viatura blindada Chaimite. Este é um Desert Ferret Daimler com o motor de um Rolles-Royce, mais vocacionado para a guerrilha urbana. A última vez que teve em operações foi na “Desert Storm”, em 1991, na primeira guerra do Iraque. Penso que foi a última vez que um carro deste tipo funcionou como veículo de combate.
O Ferret Daimler que utiliza só foi produzido durante 19 anos (entre 1952 e 1971), onde é que arranjou um Ferret Daimler de 1961?
Encontrei este carro através de um amigo que coleciona automóveis antigos em Alcácer do Sal, no Alentejo. Ele tem um grande espaço onde restaura, comercializa, compra e vende carros e, no meio destes automóveis, tinha este veículo. Já tinha ficado interessado nele há um ano e meio atrás e quando surgiu este convite para expor no MAP fui lá busca-lo.
O carro está perfeitamente operacional?
Sim porque foi arranjado, vou utilizá-lo no dia da inauguração. Já não tem canhão, mas tem um sistema de projeção de vídeo no qual projeto imagens. Achei que as ideias de construção, da implosão e de destruição podiam estar contidas neste dispositivo bélico concebido para a guerra. Este carro é uma espécie de super-herói dos carros, é um Transformer!
Que tipo de imagens podemos ver nestes ecrãs?
Podemos ver imagens de conflitos, de guerras, de construções, de paisagens e de sexo. Todo o tipo de imagens que remetem para a relação entre pessoas, desde as situações mais pacíficas às mais agressivas. Trata-se quase de um zapping de imagens e de ideias. Temos também imagens de implosões que têm especial importância porque representam a destruição silenciosa. Depois temos ainda imagens de sexo, no sentido em que existe entre duas pessoas uma enorme energia temporalmente limitada, mas muito intensa – trata-se de um momento. Nós estamos cheios de bons momentos, e de maus também, mas os bons momentos, nunca são muito estendidos no tempo, são pontuais.
Além do carro que está no exterior e que vai projetando imagens, “Layout” é constituído por outros elementos no interior que de alguma forma também estão relacionados com a ideia de construção e destruição. Como surgiram estes elementos que aparentemente nada têm a ver com dispositivos bélicos?
Eu só conhecia o exterior do MAP, numa visita que fiz com o Sérgio Parreira [programador deste ciclo de exposições] fiquei a conhecer os vários espaços interiores e toda aquela forma didática de arrumar nas prateleiras, muito característica de um tipo de pedagogia de uma época, que me interessou bastante. Novamente, outros amigos encontraram num palacete abandonado uma maquete, com cerca de 2 metros de comprimento, de uma aldeia turística no Algarve concebida pelo renomado arquiteto francês Jacques Couëlle (1902–1996). Achei aquilo fantástico e lembrei-me de utilizar esse layout que remete para a ideia de sonho, de construção e, de alguma forma, para o conceito de destruição na exposição. A partir dessa maquete comecei a pensar como é que poderia trabalhar a ideia de algo que foi sonhado, pensado e nunca veio a ser obra? Encontrei um estirador dos anos 40/50 que ajudou a completar esta ideia de atitude projetual.
Partir de objetos que já tem uma vivência impregnada é importante no seu processo criativo?
Sim, gosto de partir de ideias e de objetos com história, porque quando existe uma vivência há uma linha que me ajuda a organizar uma outra história ou o desenvolvimento da mesma. Quando encontrei o estirador, por exemplo, pensei de imediato que com aquele objeto poderia operar como um arquiteto, podia sentar-me à secretaria e desenhar o empreendimento como se fosse meu.
Faz sentido trazer esta maquete à luz do dia no MAP?
Sim, porque o MAP é um lugar condenado há muitos anos, teve alguns momentos em que se injetou sinais de mudança, mas depois tudo soa a falso porque, na verdade, as ideias acabaram por ficar em projeto e, portanto, penso que a ideia de sonho, de memória, do potencial de deitar a baixo, da reconstrução, do repensar, está presente no MAP. Acho que a maquete não é algo tão longínquo em relação a este lugar.
Todas as plantas e alçados expostos também foram encontrados nesta casa?
Não, alguns foram desenhadas por mim, são plantas, alçados, histórias e situações que têm a ver com a ideia de construir novos contextos na maquete, nos quais imagino, por exemplo, lugares com estruturas de casa, com tanques de guerra e máquinas de construção.
De onde vem o interesse por estas realidades bélicas?
Eu nasci num período em que a Guerra Fria esteve presente até aos meus 25 anos, e isso era uma carga que existia efetivamente, porque a qualquer altura havia a hipótese da guerra acontecer. O meu pai tinha estado na Guerra Colonial e havia uma série de razões que me davam uma proximidade com aquele assunto que eu não desejava de manheira nenhuma, mas era uma espécie de fantasma.
Acha que o facto de ter tão presente a memória da Guerra Fria espoletou o seu interesse por mecanismo bélicos?
Nos anos 70 era normal uma criança construir kits fosse do que fosse. Mas a guerra era uma realidade muito presente e todas as marcas como, por exemplo, a Tamiya, a Revell ou a Airfix, faziam kits de guerra. A II Guerra Mundial era “a” grande guerra antes dos anos 60, pois tinha acontecido há 30 anos. Lembro-me de ter 12 anos e fazer as minhas construções de paisagens que se assemelhavam a uma zona do deserto no Norte de África ou a um desembarque numas ilhas do Pacífico. Portanto, a guerra fazia parte do meu imaginário infantil e ajudava, de forma quase didática, a compreender a dimensão do mundo e daquela guerra. Muitas crianças, sobretudo nas grandes cidades, faziam estes kits como distração.
Considera que estes tanques de guerra e máquinas de construção são similares na sua mecânica de atuação perante o mundo?
Sim, na verdade são estruturas quase idênticas. Umas são amarelas, outras camufladas, mas a escala e a estrutura são muito semelhantes, apesar de uma ser feita para construir, outra para destruir. De alguma forma, são pares entre si até em termos de atitude perante o mundo, se pensarmos que a construção está ligada também à guerra.
Sente-se comandante e arquiteto nesta exposição?
Sim, sinto-me comandante no momento em que decido entrar com uma máquina de guerra e mostrar o filme que acho que é aquilo que deve ser apresentado, mas sinto-me arquiteto no momento em que estou a pensar e a desenhar algo que na verdade é tão frágil e que pode desaparecer em qualquer altura.