Entrevista realizada à artista Ana Pérez-Quiroga a propósito da sua exposição “Antes Morta que Burra”, enquadrada no ciclo de exposições “Projecto Travessa da Ermida no MAP”, Lisboa, abril 2014
Investigadora afincada do quotidiano enquanto matéria de reflexão artística, Ana Pérez-Quiroga apresenta neste novo ciclo do Projecto Travessa da Ermida no MAP a peça “Antes Morta que Burra”, realizada e exposta pela primeira vez em 2005, na Casa dos Dias da Água, em Lisboa, e, no ano subsequente, na Universidade de Vigo. Composta por um conjunto de orelhas de burro suspensas e bordadas com expressões idiomáticas sobre este animal, a peça “Antes Morta que Burra” convoca não só a memória coletiva dos vários sentidos pejorativos associados ao animal, como também solicita uma interação física do visitante. Em conversa, Ana Pérez-Quiroga explica a génese, o processo criativo e a unidade conceptual da obra que aqui se apresenta.
Por Catarina da Ponte
A peça “Antes Morta que Burra” foi exposta pela primeira vez em 2005, na já inexistente Casa dos Dias de Água, em Lisboa. Qual foi o ponto de partida para a sua criação?
Nessa altura, estava muito interessada em frases idiomáticas e em explorar o androcentrismo da linguagem. O meu trabalho sempre esteve relacionado com a maneira como o ser humano é olhado, especialmente, a maneira como as mulheres são vistas e integradas na sociedade. Quando fiz esta pesquisa de frases sobre burros, estava à espera de tropeçar numa que relacionasse o burro e a mulher, da mesma forma que encontramos exemplos de outro tipo de comparações zoomórficas como: “esta mulher é uma piranha” ou “é má como as cobras” ou ainda, “perigosa como uma serpente”, mas curiosamente não encontrei nenhuma…
Mas houve algum acontecimento específico que espoletasse esta reflexão artística?
Sim, naquele momento [2005] foi claramente uma reflexão politizada, porque estavam a acontecer grandes alterações no Ministério da Cultura, designadamente na lei orgânica e na redução do orçamento para esta área. Esta situação representava, para mim, uma verdadeira “burrice” (para utilizar o conceito que está na génese deste trabalho). Hoje, ainda estamos pior porque passámos para uma Secretaria de Estado da Cultura e, em termos orçamentais, os montantes atribuídos são insignificante.
Porque escolheu trabalhar especificamente com frases idiomáticas sobre o animal burro?
Na cultura popular se por um lado, sempre houve uma conotação positiva de valores humanos com animais que, de alguma forma, admiramos, como por exemplo “Veloz como uma gazela” ou “esperto como uma raposa”, por outro lado, também sempre existiram comparações utilizadas para realçar algum aspeto negativo da natureza humana ou falhas de caráter. Esta associação conduziu-me a uma questão: Por que razão o animal burro estaria sempre conectado com situações menos simpáticas? Não podia ser apenas por ser teimoso, porque existem milhares de animais que são teimosíssimos. Depois de uma investigação apercebi-me que se tratava de uma herança da cultura judaico-cristã em que, por exemplo, no presépio, o burro simbolizava o demónio, ou seja, “o mal” e a vaca simbolizava “o bem”. Portanto, é daqui que vem a origem de o burro ser “burro” e de termos incorporado este conceito pejorativo na nossa linguagem.
O que motivou a escolha desta peça para o ciclo Projecto Travessa da Ermida no MAP? O que podemos encontrar de diferente em relação às duas anteriores exibições?
Escolhi-a porque havia uma adequação das frases idiomáticas que constituem a peça “Antes Morta que Burra” ao contexto do Museu de Arte Popular, por se tratarem de frases vernaculares. Nesta exposição, a peça modificou-se apenas no seu tamanho (foi ampliada para o dobro) mas o sentido manteve-se. Além das orelhas de burro suspensas com as frases bordadas, existe agora um conjunto de frases idiomáticas em diversas línguas, feitas em vinil e coladas na parede, que permitem que o espectador estrangeiro possa relacionar-se de outra forma com o sentido da peça.
Os seus trabalhos, de forma geral, solicitam o espetador a interagir, mas esta peça concretamente convoca diretamente o visitante a imiscuir-se com obra…
Sim, as orelhas de burro estão colocadas a várias alturas, precisamente para o visitante ter a possibilidade de escolher qual a que se encaixa melhor na sua cabeça e brincar. A peça tem por isso também um sentido lúdico. O facto de as pessoas poderem mexer nas minhas peças e relacionarem-se com elas, fazem com que sejam parte integrante das peças. Não gosto absolutamente nada de sacralizar objetos.
Das 38 frases em português que fazem parte da peça, acabou por escolher para o título a frase: “Mais Vale Morta que Burra” que não existe no universo das frases idiomáticas. Esta expressão remete-nos, de alguma forma, para o seu processo criativo, que passa por uma observação constante do quotidiano, um estado de vigia que lhe permite transformar determinadas situações em reflexão artística. Concorda?
Sim, porque o meu trabalho, inclusivamente a minha tese de doutoramento, intitulada “Breviário do Quotidiano #8 – Os regimes acumulativos dos objetos e as suas determinantes” reflete a forma como transformo o meu quotidiano, neste caso a minha casa, em reflexão artística. Quando mostro a minha casa no site [www.anaperezquirogahome.com] e as pessoas podem vê-la, visitá-la e podem até comprar alguns dos meus trabalhos fotográficos por um valor simbólico de 30 euros, o que me interessa é inverter a lógica económica que está por detrás das atuações artísticas. De forma utópica, tento fazer uma espécie de democratização do objeto artístico, porque hoje em dia continua a existir uma relação muito estreita entre o valor económico e o objeto artístico (“quanto mais caro melhor”). O que pretendo é fazer um movimento de rutura com estes esquemas económicos que professam a equação: “valor = qualidade artística”. Mas claro, que não o posso fazer com todos os trabalhos, por variadíssimas razões. Uma delas são as infinitas horas que alguns trabalhos exigem até estarem concluídos.
Relativamente à irónica frase que escolhi para título, esta reflete não só todas as frases sobre o animal burro e as suas respetivas implicações, como espelha também aquilo que reivindico para mim – tentar nunca ser burra! – estar num estado de permanente crítica tanto a meu respeito como perante a sociedade em que vivo e interajo. Os títulos das peças são sempre de fundamental importância para a compreensão das mesmas. A maior parte dos títulos das minhas obras assumem um carácter irónico e autobiográfico.
Que materiais utilizou para a concretização da obra?
A peça é feita com um tecido de mistura de algodão e lã mesclada a partir de restos de outros tecidos. Acaba por ser feito num tecido menos nobre numa “Cor- de- Burro quando foge” (muito manchada, muito pigmentada). Ou seja, também no tecido quis que a peça, na sua unidade conceptual, fosse uma negação de tudo. O tecido é um têxtil utilizado para limpar o chão, as frases são insultuosas e estão bordadas numas orelhas de burro a vermelho, uma cor conotada com a esquerda, e a “esquerda” é logo à partida uma coisa revolucionária que evoca a mudança para terminar com este tipo de ditaduras linguísticas.
Para terminar, uma pergunta ingrata: das frases que fazem parte da instalação “ Antes Morta que Burra”, qual a sua preferida?
Gosto muito da expressão: “Cor-de-burro quando foge”. Primeiro, porque adoro cores, e depois, porque o meu trabalho tem muito a ver com esse lado cromático e da exploração da cor por si só. Quando se utiliza esta expressão é para se referir a uma cor indescritível e de que não se gosta. Acho graça a isso.